março 13, 2024

............................................................. A JUVENTUDE da SANTA MÃE

 

Mãe! São três letras apenas,
As desse nome bendito:
Três letrinhas, nada mais...
E nelas cabe o Infinito
MÁRIO QUINTANA
(1906 – 1994. Alegrete, Rio Grande do Sul / Brasil)
 
Ilustrações:
TERENCE CLARKE
(1953. Reino Unido)
 

em memória ao incentivo à leitura
dado por meu Pai, com jornais,
livros e revistas em quadrinhos.
 
em memória ao Pai
que pressentia a injustiça social
que se oculta no fundo daquilo
que para outros é a justiça.
 
 
Os sentimentos fazem parte de histórias e lembranças. Enigmáticos são os caminhos do coração. Mas aqui está minha cândida Mãe. Ungida pela fé, esse mistério que põe no espírito a força da bondade humana. Não creio que ela seja dada à meditação. Todavia, algumas vezes deve ter refletido, como todo mundo, sobre sua notável trajetória. Foi boa filha, boa esposa, é boa mãe e boa avó. Foi boa dona de casa, boa cozinheira, boa conselheira. Sabe ser amiga, compreender as fraquezas humanas e estender a mão a quem precisa. O traço singular de sua personalidade, talvez o mais marcante, é a generosidade, sem nunca precisar humilhar ou derrotar ninguém. Reina em casa e, em todo caso, faz bem as coisas. Acredita no Bom Deus e sabe que tudo se passará de acordo com as regras sagradas e não há lugar para nos atormentamos com o destino. Tive a bênção de ser filho dessa senhora virtuosa.
 
Ela foi o alicerce na construção e consolidação do homem que me tornei. Eu hoje sou melhor por ter essa honra de um querer bem maternal a toda prova. Encarando a verdade face a face, meu presente esforço para retomar os fatos e contar sua caminhada me enche, a seu respeito, de uma simpatia cúmplice. A passagem do tempo ilumina a memória e nosso relacionamento. Alimento com substância alquímica para tentar fazê-la viver ou reviver. Eu a amei primeiramente com um amor egoísta e distraído, como a maior parte das crianças. Depois, com uma afeição feita sobretudo ao hábito, perturbada por uma juventude inquieta. Por fim, experimentei um sentimento de ternura, misturado ao alívio de acreditar estar protegido por essa guerreira da perigosa aventura de viver, amparado em sua lição cotidiana de valores morais.
 
O tempo passou sem que eu soubesse como. Conhecer bem as pessoas é quase sempre descobrir relevos e riquezas inesperados. Os seis filhos (Neto, Urbano, Paulo, Marcelo, Anna Áurea e eu) de Lurdinha sempre foram sua prioridade, e ela até se anula para dedicar total atenção a todos. Compartilhamos anos cúmplices. De grande beleza, Mamãe é um exemplo. Iluminada, resiliente, incapaz do mal. Nas ruas em que moramos, era uma discreta mãezona da vizinhança. Sobrava delicadeza para distribuir com parentes e vizinhos. Tocando o lar o dia inteiro, também cantarolava, ouvia rádio, via telenovelas e lia as revistas femininas típicas. A sua risada é a coisa mais linda, além do olhar suave de apurados olhos negros. Uma senhora deslumbrante! Todos ao seu redor são encantados por ela. É o nosso orgulho, o nosso maior amor.
 
O ciumento Papai a amava apaixonadamente, mas infelizmente morreu jovem e ela continuou na cara e na coragem protegendo seus filhos, sem cogitar outro relacionamento. Eu mudei de cidade e de país, mas meus sentimentos por ela permaneceram blindados. Com a alma em choro, disfarçava o semblante de uma Mãe de filho ausente. Quem se deu bem foram meus irmãos, que ganharam a minha cota no carinho diário. Afinal, amar é como uma chuva fertilizante dentro da alma; é benevolência que se mantém firme, independente do tempo e da distância. Estou longe do alcance dos seus braços, mas diariamente nos falamos. Ela costuma encerrar seus telefonemas com um “Filho, eu te amo, sinto saudades”. Emocionante. Que Deus a continue abençoando.
 
Os Anjos quebram as regras e fazem milagres para os honestos e generosos. Mamãe nunca esteve ciente das suas qualidades. Ela pensa mais nos outros do que em si. Toda sua vida se resume a uma série de sacrifícios para sua família, seus amigos e até mesmo para pessoas que nem são tão próximas. O Céu sabe disto. Neste momento, ela está atravessando um período doloroso. É uma senhora idosa, beirando os 90 anos, fisicamente frágil, entretanto lúcida. Precisando de cuidados apurados, fechou sua casa e foi morar com um dos filhos, Urbano, sua esposa Rafaela e dois netos meninos. Tem cobertura médica, fisioterapia, boa alimentação e afeição familiar. Os filhos sempre por perto.
 
Católica incondicional, assiste missa na TV, faz palavras-cruzadas, recebe visitas, passa os sábados na sua fazenda Bela Vista, em Itapé. E após altos e baixos ao longo da existência, é de se surpreender sua crença no próximo. Os turbilhões dramáticos, as dificuldades privadas, a preocupação por aqueles que queria ajudar. Levou em suas costas um fardo muito pesado, mas sem merecer! Bem pelo contrário, suas lutas, sua coragem para vencer os obstáculos, causam admiração. Raramente as emoções negativas tomam conta da sua mente, nem sua alma se cansou. Jamais assumiu uma carga tóxica, tampouco construiu uma muralha entre ela e os bons sentimentos. Na juventude de Lurdinha, as mulheres criavam muitos filhos com a diferença de idade de um ano, um ano e meio, de um para outro. Uma diferença muito pequena, uma escadinha. Tudo era mais difícil, mais lento, demorava mais. Mas havia cuidado, zelo.
 
Não tinha máquina de lavar, fralda descartável, produtos sofisticados de limpeza. Os pisos eram de tacos, precisavam ser encerados para mantê-los limpos e brilhantes. O vestuário durava, reaproveitado pelos irmãos mais novos. Não havia utensílios ultramodernos, mas as roupas estavam sempre limpas e passadas a ferro, a casa organizada, a comida na mesa, os filhos educados e respeitosos. A mulher daquele tempo não tinha as facilidades da mulher de hoje. Os filhos lavavam a louça, limpavam o chão, molhavam as plantas, alimentavam os animais, ajudavam no serviço doméstico. Mesmo sobrecarregada, a Mãe reforçava princípios, referências do certo e do errado, cuidava da agenda dos filhos. Ela cumpria o papel de proteger o núcleo familiar. Lurdinha é dessa época em que as super donas de casa faziam milagres.
 
Ela nasceu em 27 de abril de 1936. Ganhou no batismo e no cartório o nome Maria de Lourdes, e logo o apelido de Lurdinha. Nasceu na minúscula Brejinho, sul da Bahia, entre Buerarema, Ferradas e Itapé. Filha da durona Nininha e do dócil Pedro. A partir dali começava o itinerário da enorme mulher que seria. Profundamente desejada, nasceu no decorrer de um dia ensolarado. Nasceu na sequência de um ritmo rural. Nasceu beirando o então formoso Rio Cachoeira. De um lado a outro do cenário monumental, a beleza natural, o caminho caminhando, o deslumbre quando o tempo se suspende, e se permite parar a contemplar o espaço sem tempo. Ali admirava a vista que estendia-se até a mata de cacau, até bater os olhos nas paredes do céu. Havia uma ladeira e uma casa branca plantada no alto, sem energia elétrica, com três degraus para acessá-la.
 
Lar antigo de rede no alpendre, assoalho, sala de jantar e cozinha de chão pintado, fogão a lenha. Um lírico jardim com jasmineiros, rosas cor de vinho, palmeirinhas, laranjeiras e cafeeiros. Lírios-verdes na relva, um tufo azul de ásteres entre a harmonia dos tons cinza e prateado. Nos dias de chuva, a conversação ao lado do fogo eram o melhor refúgio. Sua boa memória guardou as primeiras lembranças da fazenda modesta de idílicos campos de pastagem. Um pasto na frente da residência rústica, galinhas, porcos e patos. Barcaças de cacau. Cacimba. Num curral, duas vacas e cavalos. Casa de farinha. Mais adiante, uma lagoa e um ribeirão, onde se lavava roupa e pescava pitú e acari, de jereré. O núcleo familiar Mendonça tinha um jovem e respeitoso ajudante, Saturnino, que também colhia o cacau naquele reino encantado.
 
O cheiro de café gordo e de pão fresco vindo da cozinha. Um copo de leite no curral. No café da manhã, comiam ovos, cuscuz, mugunzá, coalhada e arroz doce. No almoço, carne fresca, lombo, ensopado, feijão e arroz.
Se distraia com o voo de pássaros migradores lá no alto, sol a pino. À noite, luz de fifó e diante deles a deslumbrante lua dourada e estrelas cintilantes. Ninguém deixava de rezar antes de deitar-se. Isolada do mundo, perto do lugar havia somente outra fazenda, a de Pedro Cordeiro. A parente mais próxima, a avó Silvina, morava em Ferradas. Lurdinha viveu nesse paraíso até os sete anos de idade, onde aprendeu a ler com a Mãe Nininha. Na superfície de sacos de pão, rascunhou com lápis, a mando da sua primeira professora, a letra L do seu nome várias vezes naquele papel cinzento.
 
Minha saudosa avó, Nininha, nasceu na divisa com Sergipe, em Cachoeira da Abadia. Eu era apaixonado por ela. Fazia um bife picante de dar água na boca e me defendia da fúria verbal de Papai diante dos meus chiliques atrevidos. Meu avô, o sertanejo Pedro, nasceu em Itabaiana, Sergipe. Quando seu irmão, o sergipano Brás, mudou para Ferradas, ele decidiu comprar uma pequena fazenda por perto. Era um senhor tranquilo, religioso. Ele vivia sem aborrecimento. Testemunhei e dou fé: lembro-me dele sentado numa cadeira de madeira que parecia um trono, na calçada da sua casa, proseando. Eu sentava no seu colo, enquanto ele cheirava rapé. Branco, baixo, de bigode, fumante de tabaco de rolo, não discutia nem tratava mal ninguém.
 
O que acrescentar ao que se sabe dele? Aos 48 anos de idade, desposou Nininha, de 23 anos, uma garota mandona, de coração parcimonioso e modestas carícias. Foram morar na fazenda onde Maria de Lourdes nasceu. Terra de secas e de cheias. De céu e de bichos. De luzes e sombras. Das águas correntes do rio e das águas paradas do açude. Quatro anos depois foi a vez de Maria do Socorro, que Lurdinha cuidava, colocando no colo infantil. Começava assim a surgir a mãe santíssima que ela tanto saberia ser. A irmãzinha morreu aos seis meses de idade, vitimada por uma febre ardente, chamada “mal de sete dias”. É possível que se tratasse de uma febre tifoide. Por fim, nesse retiro bucólico, nos verdes dos chãos, nasceu a caçula, a indomável Maria Rita. O progresso um dia destruiria essa paisagem. Ela viveu ali, em todo caso, durante sete anos, nas mais puras alegrias da infância.
 
Uma tal vida agreste parece, em nossos dias, ultrapassada ou deprimente, ou ambas. Mas Lurdinha não conserva más lembranças desse tempo. Oito décadas mais tarde, evoca esse passado com entonações enternecidas e sorrisos discretos. Como sempre, cada vez que ela se voltava para o mundo de vastos campos de solidão, a vida estava presente. Com seu imprevisto, sua natural defesa, sua doçura vez ou outra e sua quase plenitude. Foi de seu pai, que, segundo parece, herdou essas maneiras delicadas que são o sinal exterior de uma amenidade e de uma elevação de espírito verdadeiras. É uma daquelas mulheres que estão determinadas a fazer o melhor possível dentro da sociedade tal como ela é. Ela se divertia indo com a família à feira, aos sábados, em Ferradas. Faziam compras em Itabuna, no final do ano.
 
Entre hábitos, costumes e tradições, era amada pelos pais – “meu pai era um dengo comigo” – e colecionava bonecas de pano costuradas pela Mãe. Em dezembro, hospedavam-se na casa da avó Silvina, justamente para a festa de Nossa Senhora da Conceição, no dia 8. Havia missa e procissão, e Lurdinha se divertia com Ana, uma pretinha criada pela avó. Brincavam de fazer caretas, brincavam com as sombras ao longo da parede. Mas o velho mundo desmoronava. Quando chegou a época de ir a escola, a avó e os pais mudaram-se para Itapé, comprando casas no centro da cidade. Comportada, um pouco encabulada, Lurdinha cresceu com todos gostando dela, acreditem. A polidez um tanto constrangida, carinhosa e tímida. Nunca foi danada nem namoradeira, muito pelo contrário. 
 
mãe e pa
Sem pompas e adereços, ela e a prima Terezinha eram as mais belas garotas do pequeno lugar. Orminda, Belinha e Marieta, suas melhores amigas. No final de semana, cheirando a alfazema ia ao cinema. Amava o aventureiro sedutor Errol Flynn e guardou no coração o drama romântico “Suplício de uma Saudade”. Fez aula de corte e costura com Dona Isabel. Aprendeu a cozinhar. Ia às festas no São João e Natal. Numa delas, na metade da década de 1950, dançou com um rapaz de terno branco e gravata, e rendeu-se aos encantos dele. Filho do fazendeiro Zé Bispo, Antônio estudava em Aracaju e depois em Belo Horizonte. Proprietário de armazém de compra de cacau em Itapé, meu avô e filhos estavam sempre por lá. Quase cego, tinha como traço dominante, o fazer amizades. Alegre e conversador, gostava de bater perna. O namoro durou quatro anos com cartas de amor, noivado e casamento na Catedral de São José, em Itabuna, com Luzia Alves e Gervásio Santos – outra saudade - como padrinhos.
 
Protegida na sombra masculina daquele que viria a ser meu Pai, e estimulada pela paixão primeira, deixou a casa dos pais e foi construir sua vida matrimonial. Lua de mel em Ilhéus e na fazenda dos sogros bem-sucedidos. Casa grande reformada em Itapé e finais de semana em Itabuna, na rua Rui Barbosa. O casamento foi um teste para seu coração materno. Mais aí já é outra história, um dia talvez eu conte. Segundo um ditado judaico, ao criar o mundo, Deus percebeu a dificuldade que teria para estar em todos os lugares; e aí inventou as Mães. Quanto a isso, eu posso constatar a divindade na maternidade por experiência própria. Vi e pude sentir em Dona Lurdinha uma santa que ilumina com sua bondade e apascenta com sua fé cada um dos seus filhos e as pessoas sob a sua estufa de amor. A vida muito lhe deu e muito lhe tirou. Sua presença incentivando os caminhos éticos para minha entrada na maturidade foi imprescindível para os meus futuros passos.
 
Das ondas de boa vontade que emanam dela, abriu a ponte do mundo pra mim, diante da estranha zona de sombra de onde viemos e para onde voltaremos. Eu saí do seu ventre num parto que de tão normal ela considerou uma hora mágica e feliz. O eu bebê berrou no tapa da parteira Dona Aída por volta da 1h da madrugada. Sendo assim, essa crônica pretende ser a expressão da profunda gratidão a Nossa Senhora Lurdinha. Rogo ao Bom Deus, irradiar sobre essa santa Mãe, suas melhores bençãos, e de nos conceder a felicidade de lhe conservar ainda durante longos anos em boa saúde, na afeição sincera dos seus filhos, noras e netos, e muito particularmente de seu filhinho maior, um amante das palavras poéticas.
 

DEZ FRASES INSPIRADORAS
 
01
“Tudo aquilo que sou, ou pretendo ser, devo a um anjo, minha mãe.”
ABRAHAM LINCOLN
 
02
“Mãe, na sua graça, é eternidade.”
CARLOS DRUMMOND de ANDRADE
  
03
“Sinto que no céu, os anjos, sussurrando uns aos outros, 
não encontram entre os ardentes termos de amor 
nenhum que expresse mais devoção do que o de ‘mãe’.”
EDGAR ALLAN POE
  
04
“Mãe é aquela pessoa para quem você corre quando está em apuros.”
EMILY DICKINSON
  
05
“No coração das mães se encontra sempre o perdão.”
HONORÉ de BALZAC
 
 06
“Um amor tão poderoso quanto o de sua mãe por você 
deixa sua própria marca. Ter sido amado tão profundamente 
nos dará alguma proteção para sempre.”
J. K. ROWLING
 
07
“A mãe é eterna, o pai imortal.”
MIA COUTO
  
08
“Os homens são o que as mães fazem deles.”
RALPH WALDO EMERSON
 
 09
“Os filhos são para as mães as âncoras da sua vida.”
SÓFOCLES
  
10
“Os braços de uma mãe são feitos de ternura e os filhos dormem neles.”
VICTOR HUGO
 


fevereiro 23, 2024

..................................................... APENAS um CORAÇÃO GRAPIÚNA


 

“Uma parte do nosso ser, a verdadeira, é invisível como o ar que agita os ramos.”
 
“O homem é um castelo feito no ar. O que ele tem de não existente, é que lhe dá existência. O engano em que ele vive, é que lhe dá vida. Toda a realidade do seu corpo se firma na mentira da sua alma.”
TEIXEIRA de PASCOAES
(1877 – 1952. Amarante / Portugal)
Aforismos (1998)
 
Ilustrações:
GIANNI De CONNO
(1957. Milão / Itália)

 
 
Enxergo, com impiedosa nitidez, o antro leviano em que convivi. Circulando nessa sociedade onde os valores estão invertidos, numa experiência profunda e assustadora, perdi em algum descaminho a esperança na humanidade. Sem arrependimento pelas tolices cometidas; sem amargura, queixas ou melancolia, assumo que houve um rompimento imperativo. Terminei convencido da importância enigmática de dias e noites de uma solidão intelectual e espiritual. Quando não estou no trabalho profissional externo, cozinho comidas espartanas, cuido do jardim onde plantas sussurram, observo o voo de colibris, passeio com o cachorro brincalhão, vou à praia deserta, o vento dança na pele, os doces devaneios, as longas e aconchegantes horas de leituras, melodias de clássicos e jazz, vibrantes filmes antigos, e por fim, deitado na rede diante do crepúsculo ou um pouco de loucura nas redes sociais.
 
Costumo conversar com o divino, mas evito igrejas. O cristianismo como imagino não é servo de comunistas, é infinitamente puro, semelhante a Jesus e moralmente mais elevado do que tudo que vem do Vaticano. Acredito que estou verdadeiramente vivo e alerta. Noutra época, quase numa outra existência, fui um devasso romântico ou um libertino escravo do amor. Como se viver fosse uma diversão! Já não compartilho tais sensações. E o retorno ao passado não é debilidade, talvez seja uma fortaleza. Uma técnica que utilizo na redenção do presente, realizando o que a vida exige de mim, mesmo indo contra os padrões vigentes. Homem de transformações e mudanças, nunca ambicionei poder e glória. Pouco hábil na dialética, amadureci fiel a um relacionamento inato com a escrita, a beleza e a arte, sem utilizá-las inicialmente a objetivos práticos. Pressentia que nelas havia a salvação.
 
Durante toda uma suprema existência, procurei ser autêntico, com bons propósitos, o que me tornou invejado e popular. Morei na volúpia de diversas cidades e países excitantes. De Salvador a São Paulo, de Barcelona a Londres, de Sintra a Paris. Memórias flutuantes. A alma inquieta seguindo as trilhas da nostalgia. Recordo que constantemente havia convidados ou hóspedes comigo. Nessa ilusão ou descompromisso, fazia questão de promover festinhas, jantares, reuniões sociais surrealistas, noitadas cinéfilas. Casei, descasei, casei outras vezes, experimentei ligações ardentes. Era meio inocente, de um coração virtuoso, transbordando paixão e amizade. Tropecei, mas segui avante, afinal tenho vocação para a felicidade. A vida, como eu a entendo, não é fácil de traduzi-la em palavras, mas posso expressar que o sofrimento e a lamentação não são os refúgios mais sensatos.
 
Uma amizade repousa em permanecer cada um consciente da sua maneira de ser, aproximando-se do outro em liberdade, e concedendo-lhe lealdade. Minhas amizades eram um jogo. Tendiam demasiadamente para o vazio, o estético, a luxúria, o profano. Personagens escorregadios, totalmente obnubilados. Eu não conseguia captá-los densamente. Compreendi o valor do viver através do encontro espiritual. Com essa descoberta, renovei-me, suavizando os dilemas do coração. Verifiquei que jamais fui diabólico. Sem falsa modéstia, ajudo ao próximo na medida do possível. Abriguei imigrantes patrícios sem um tostão, hospedei turistas amigos de amigos, arranjei empregos para fracassados, fui responsável por casamentos duradouros, divulguei artistas amadores em jornais e programas de tevê, escrevi prefácios e críticas literárias incentivadoras. Com boa vontade, faria tudo outra vez.
 
Entre pressentimentos e franqueza total, contemplar a nossa face oculta faz parte da metamorfose necessária. Sempre tive o impulso para o “novo mundo”, o pessoal mais secreto, mesmo sabendo que não há retorno. O que ficou para trás não se repete. Por anos, a mediocridade instalou-se à minha volta, rastejando e crescendo em segredo. Em 2016-2017, desiludido, em plena e cruel depressão, o meu universo se transformou subitamente. Atordoado e desamparado, rompi as relações desconfiadas e artificiais, ao mesmo tempo em que os militantes de esquerda me riscaram do mapa. Um dia acordei sozinho. Eu era Robinson Crusoé sem Sexta-Feira. Vivendo de acordo como o coração dentro do peito me exige, de acordo com a dignidade dos sentimentos próprios mais sensíveis, distante da vivência “para fora”, para o manicômio social, para o estado, para a igreja, para os outros.
 
Numa espécie de reconciliação e entrega, não me sinto de modo algum desafortunado, insatisfeito ou perdido. Estou agradecido com o fato de o indizível poder se manifestar e ser vivido com cortesia. Em todos esses sete anos de lições misteriosas, não recuei, satisfazendo as exigências morais. Deixei de frequentar ambientes psicodélicos, festas sofisticadas, eventos artísticos. Não mais estampei meu retrato deslumbrado em colunas sociais nem dei entrevistas para jornais ou tevês. Decidi não escrever livros por algum tempo. Evito receber visitas e fazer visitas. Passei a ter relações sexuais somente com meu próprio corpo. Aprendi a desconfiar e a analisar. Nos primeiros meses, fantasmas camaradas fizeram falta, mas com o tempo se tornaram desnecessários. Foram esquecidos e perdidos na memória. Tenho me mantido incondicionalmente fiel ao meu ideal de renascimento e sem torturante sacrifício, sem fraquezas e aflições.
 
Coloquei-me a serviço da verdade. Se bem que para muitos uma vida de pensamentos, arte e isolamento pode parecer desperdiçada, meio sinistra. Mas não há no coração a necessidade de estar com a razão. Cada qual tem sua própria trama. Acredito que as boas intenções têm uma resistência muito mais segura e prolongada do que a maldade e a superficialidade. Sozinho, compreendi o insustentável panorama social neurótico e doente, viciado na vaidade, na indiferença, no oportunismo, na ingratidão, no delírio do dinheiro. Movidos por desconhecimento da essência do sagrado, por despreparo ético e pela repulsa ao que lhe parece emoções ultrapassadas, as pessoas perderam o rumo e o prumo. Nas profundezas da inconsciência, bajulam a dissimulação, a crueldade, o medo, os vícios, as intrigas, a inveja. De personalidades fracas e crédulas, são oprimidas por uma existência malévola e sem sentido.
 
No estado de alienação dos dias atuais, um homem (ou uma mulher) de bem sem dúvida é uma joia rara. Também é incomum um perfil autêntico, realmente merecedor de discípulos. Mas não é impossível. Talvez esse distanciamento de uma sociedade medíocre, possa ser fortalecido através da ligação com a natureza, com a religiosidade ou com o intelecto sem vaidades. Não creio na nossa política, nem nos nossos líderes religiosos, nem na nossa imprensa, nem nos nossos artistas, nem na nossa maneira de viver. Não participo dos ideais de nosso tempo, sou de outro século. Caí por motivos obscuros nessa confusa alienação dos tempos modernos. No entanto, entre hábitos líricos, e sonhos grapiúnas, levo o mistério de viver com aprendizado e simpatia. De bom humor e etérea consciência, administro um minúsculo e encantado reino do conhecimento humilde e da responsabilidade espiritual.
 
Nesse enigma, tornei-me um veterano num cálido caminho, tão impávido como se tivesse companhia, sem deixar-me enganar facilmente por tendências e espantos. E assim, sob um firmamento de claras estrelas, submeto-me aos pensamentos elevados, ao respeito próprio e ao contentamento artístico. Para finalizar, a explicação de Sérgio Buarque de Holanda sobre nossa aversão à reflexão e à solidão: “No ʻbrasileiro cordialʼ, a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência. Sua maneira de expansão para com os outros reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela social, periférica, que no brasileiro tende a ser a que mais importa. Ela é antes um viver nos outros. Foi a esse tipo humano que se dirigiu Nietzsche, quando disse: ʻVosso mau amor de vós mesmos vos faz do isolamento um cativeiroʼ.”